A década de 1920 prometia aos cariocas anos promissores, mas Eurídice Gusmão nunca os encontrou. Filha de portugueses, desde cedo aprendeu que suas vontades e talentos não possuíam espaço no Rio de Janeiro, e que ter um marido, ser uma mulher honrada aos moldes dos costumes da época e poder passar duas horas arrumando seus cabelos em salões de beleza era o máximo a ser cobiçado -- e eternamente agradecido. Mesmo assim, nada disso era suficiente para alguém como Eurídice.
Por não ser suficiente, a Parte de Eurídice Que Não Queria Que Eurídice Fosse Eurídice se acendia com mais frequência do que Antenor, seu bom marido funcionário do Banco do Brasil que provia tudo o que seus filhos e esposa poderiam necessitar mesmo que nunca os tenha perguntando o quê, gostaria. Enquanto seu café estivesse passado, seus chinelos próximos a cama e a casa em ordem, tudo estava bem; mas era Eurídice querer inventar de escrever, de costurar ou de encontrar algo para completar suas tardes ociosas que virava vagabunda. E assim a mulher com talentos vários e oportunidade nenhuma continuava sua existência invisível.
“Concordaria com tudo, desde que não tivesse que dizer mais nada. A moça estava numa espécie de autos da vida, porque depois das torturas da escola, da febre da flauta, do drama do flerte, das quimeras da quitanda, das conquistas da cozinha e das artes da costura ela se rendeu, anunciando a vitória da Parte de Eurídice Que Não Queria Que Eurídice Fosse Eurídice.”
Apesar do nome, A Vida Invisível de Eurídice Gusmão não tange apenas a personagem que o nomeia. Nele temos Guida Gusmão, irmã de Eurídice que segue caminhos diferentes, mas tão invisíveis quanto, e que de tanto fugir, retorna ao ponto de início. Temos mulheres como Zélia, que de tão infeliz precisa espalhar para o bairro as infelicidades alheias -- sejam elas verdadeiras, ou não --, mas que em momento algum é tida como uma vilã na história: Zélia tem um passado, como todos, e é ele quem dita o que será no futuro. Zélia também tem a sua invisibilidade.
“Zélia não se tornou um simulacro de ornitorrinco assim, de uma hora para a outra — essas coisas de evolução demoram para acontecer. A transformação começou ainda na infância, quando o que era para ser dom se tornou pesar. Do pai ela herdou o gosto pela notícia, da mãe a vida restrita ao lar. Do mundo ganhou desgostos, do destino a falta de escolhas. Formou-se assim a essência da fofoqueira.”
Com diversas mulheres precisando ser visíveis ao longo dos capítulos, A Vida Invisível de Eurídice Gusmão é uma colcha quentinha em um fim de tarde preguiçoso em forma de livro. Leve, quente, tem seus momentos de coceira em que pode causar a vontade de atirá-lo longe, mas não por ser ruim, o desconforto vem daquele calor de reconhecimento, vem da percepção de que os anos passam, as cenas mudam, mas as invisibilidades femininas ainda estão aí e continuam não sendo faladas nem por nós.
Ao escrever sobre como ser mulher é ao mesmo tempo, não conseguir ser, Martha Batalha não decepciona. E não é para menos: a autora que teve seu livro rejeitado anteriormente no Brasil, foi aceita por editoras estrangeiras -- hoje tem sua obra traduzida em mais de cinco línguas --, com direito a contrato para futura versão cinematográfica, e só então foi publicada em território nacional.
Uma leitura aconchegante, rápida e mesmo assim profunda. Em um quote:
“Cecília veio ao mundo nove meses e dois dias depois das bodas. Era uma bebê risonha e gordinha, recebida com festa pela família, que repetia: É linda! Afonso veio ao mundo no ano seguinte. Era um bebê risonho e gordinho, recebido com festa pela família, que repetia: É homem!”
Gente, como eu nunca tinha ouvido falar sobre esse livro antes!!! Amei sua resenha (menina, você devia fazer mais resenhas. A internet tá cheia de resenhas por aí, mas carece de renhas tipo a sua, sério): senti a coceira que você citou - COMO ASSIM A MULHER QUER COSTURAR E É VAGABUNDA? COSTURAAAAAR!!! - e a parte mais interessante é que a autora sofreu exatamente esse estigma. Ser mulher escritora no Brasil não é fácil, principalmente se você não escreve sobre romances ou histórias teen. Na real, ser mulher escritora não é fácil em lugar nenhum, até a J. K. teve que esconder o nome dela pras pessoas não sacarem que ela era mulher. Enfim, talvez não seja fácil ser mulher e ponto.
ResponderExcluirNão conhecia o livro, mas já QUERO e PRECISO! Já foi direto para a fila.
ResponderExcluireu não acredito que comecei esse livro e não terminei. EU NÃO ACREDITO!!!!
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