In omnia paratus.


Em Gilmore Girls, quando a Rory entra na universidade, encontra a Brigada da Vida ou Morte, que em um dos encontros a faz pular de uma grande altura sem pensar demais nos riscos e no fim da queda. Não precisei pular de nenhum lugar, mas no inicio do ano me vi dentro da minha própria brigada, e percebi que abrir o guarda-chuva e saltar era pra lá de necessário. Foi assim que eu entrei na universidade, mas não no curso que tentei nos últimos quatro anos. 

Quando a lista do Sisu saiu, a decisão já estava tomada há dias. Não entrar naquele curso, naquela federal, nas atuais condições em que eu estava -- psicológicas, emocionais, financeiras... --, seria me manter presa há algo que não estava mais fazendo sentido. Gritei meu próprio "in omnia paratus" e desde então, de Fevereiro pra cá, já vivi mais do que em todos os outros anos prestando vestibular. 

Teve dia de matrícula com sala de espera das 9 às 17, cara pintada de verde e foto com a bandeira do curso; teve semana dos calouros com a impressão de que todas as pessoas ali eram ótimas -- achismo que já não existe mais depois dos quase dois meses de convivência diária --; teve ovada, com direito a ir no farol pedir dinheiro e muitas pessoas que não me conheciam mas davam parabéns com sorrisos enormes -- mas nunca davam moedas, o que era triste --; teve festa de recepção e as festas que já são tradicionais do campus; teve choro na biblioteca porque mesmo em um curso da área da saúde, nem todas as pessoas que encontramos vão ser boas (no significado mais simples da palavra) e querer seu bem; teve nota acima da média e nota muito abaixo da média; matérias que me fizeram entender cada vez mais o quanto gosto das ciências da saúde e que a medicina jamais deveria ser uma causa para tanta tristeza e ansiedade como foi nos últimos anos, e outras que me fizeram querer voltar pra casa e trancar a matrícula; teve a noção do quanto a universidade não é tão intocável como parecia, e de como é fácil estando ali todos os dias, esquecer do quanto eu lutei pra aprender tudo o que me foi negado no ensino médio e o tamanho do meu privilégio de ter conseguido atravessar aquele portão com o crachá de discente no pescoço; teve a empolgação de ser caloura e de querer abraçar o mundo todo de uma vez entrando em Liga Acadêmica, em Extensão, na bateria do curso e por pouco não aconteceu de eu estar também na atlética (mais maromba que eu?), e principalmente teve a quebra de um pré-conceito que me acompanhou por tanto tempo. A enfermagem não é só o que eu via nos hospitais, é claro que também é o que os técnicos fazem, também é o que chamam de "medir pressão" e "tirar sangue", mas na graduação, ainda mais em uma tão completa como a que eu tive a chance de entrar, descobri tantas funções e tantas possibilidades que todos os dias ao mesmo tempo em que me pergunto se ainda é a medicina, sei que também existem grandes chances de ser a enfermagem. 

E acima de tudo isso teve o essencial: eu. Era eu quem estava sendo pintada, quem estava rindo ou chorando, quem estava aproveitando as festas, fazendo provas e apresentando seminários. Depois de tudo e de todos, sou eu quem está vivendo tanto em tão pouco tempo. O cansaço é enorme e às vezes acho que não vale tão a pena estar nessa queda livre, mas não posso negar: ainda bem que pulei. In omnia paratus.

Para Paçoca, com amor.

Crescer sendo filha única fez com que, principalmente na infância, eu sentisse falta de companhias que não fossem mais adultas. A primeira lembrança que tenho relacionada a isso é de quando tinha quatro anos e pedi um cachorro para os meus pais. Tive o pedido negado, o que me levou a guardar uma formiga em uma caixinha de Tic Tac para ser minha melhor amiga, mas por algum motivo ela não gostou tanto da ideia e acabou sumindo. Depois disso houve um momento de "pena" vindo dos meus genitores e ganhei um peixe. Ele morreu em poucos meses porque já tinha vindo pra casa doente, então alguns anos depois, ganhei outro peixe, que viveu por quatro anos, e após um tempo, minhas tentativas de acolher peixes acabaram com a morte do casal Ping e Pong -- ela morreu, ele se sentiu solitário e em pouco tempo também faleceu. 

Apesar de todos esses casos, a minha vontade de ter um cachorro continuou existindo. Cachorros são meus animais "domésticos" preferidos, então parar de desejá-los era algo impensável, mesmo que com os anos eu simplesmente tenha parado de insistir para ter um.

No entanto, quando os vinte anos bateram na minha porta, a vontade pareceu crescer de uma forma incontrolável, e eu voltei a permitir que a vontade se manifestasse em voz alta. Pedi, mostrei vídeos de cachorros fazendo palhaçadas todos os dias para a minha mãe, corri atrás de feiras de adoção só para cutucar com indiretas como "Tal dia tem feira, vários filhotes fofos", e bem próximo ao meu aniversário, minha mãe cedeu e fomos juntas a única feira de adoção em que já estive. 

Não aconteceu no primeiro momento. Vi muitos outros cachorros antes, brinquei com eles e os acariciei, mas não pensei em levar nenhum até então. Olhei para a frente e vi um montinho de pelos pretos que dormia, e enquanto me aproximava, a vi sendo esmagada por outro filhotinho que a fez resmungar e andar para outro cantinho, onde se enrolou de novo e voltou a dormir. "Posso pegar no colo?", "Pode", e ela se aconchegou e dormiu. 



Não nos conhecemos no seu aniversário, mas o dia 4 de Abril é tão importante quanto o dia 26 de Maio. Eu estava em um momento muito difícil e solitário, e saber que um espaço de tempo tão curto foi o suficiente para que eu encontrasse a Paçoca quando eu mais precisava de companhia sempre me faz ver significados intangíveis. 

Nesse um ano de vida dela e quase um ano de convivência eu já a defendi muito -- filhotes dão trabalho e ter paciência nem sempre é fácil --, chorei quando a vi doentinha, mas ri o triplo de tudo isso com cada descoberta, curiosidade e brincadeirinha dela. A Paçoca não sabe, mas me salvou de um lugar muito feio, para o qual eu não quero ter que voltar nunca mais -- e sei que com ela, não irei. 

Dizem que quando as coisas são boas, o tempo passa rápido. Nem acredito que hoje você faz um ano, Paçoca.

© Limonada
Maira Gall