Só acontece comigo #67

Ainda não falei mal do transporte público por aqui esse ano, então nada mais digno do que o primeiro post da série menos famosa da internet, Só Acontece Comigo, homenagear ele: o busão.

A vida de quem os utiliza é dividida assim como a de todo mundo: em dias de luta (ônibus lotado, gente gritando, fedendo) e de glória (ônibus vazio, você escolhe seu lugar por métodos maduros como uni-duni-tê), e esse era aparentemente, um dia de glória.


Dois senhores sobem conversando, penso "Ah, que fofo, dois amiguinhos, hihihi". A conversa começa a ter um volume alto demais, mas não é um sinal de amigos que se empolgam falando um com o outro, é um sinal de que a agressão verbal está próxima. E ela até vem, de uma maneira educada.

-- EU NUM AGUENTO MAIS VOCÊ FALANDO, PELO AMOR DE DEUS, CALA A BOCA.
-- VOCÊ É O IRMÃO DO ROBERTO, NÃO É? EU CONHEÇO VOCÊ!
-- CALA A SUA BOCAAAA, EU NÃO CONHEÇO NENHUM ROBERTO. 

O que parecia ser uma dupla de senhores amigáveis, são na verdade dois bêbados cujo teor de álcool no sangue já matou mais da metade dos neurônios ali existentes. Essa conversa de "Eu te conheço!", "CALA A BOCAAA!" durou mais uns 5 minutos até que de repente um barulho estranho foi ouvido e uma comoção toma conta dos outros passageiros. Paro de ler meu livro, e quando olho para trás o senhor "Cala a boca" estava com as mãos no cabelo do caro "Eu te conheço!", tentando bater a cabeça do mesmo em um dos muitos ferros do ônibus.

É uma gritaria, uma tentativa inútil de separar duas pessoas que quando tentam se bater acertam o ar, alguém grita pro motorista parar o ônibus, e aquele domingo de glória às 18 horas se transformou em um dos muitos dias de luta.

O ônibus para, o motorista desce, quando puxam os bêbados pra separar cada um cai de um lado do chão, e ai começa a discussão pra saber qual dos dois vai ser expulso do transporte, porque se deixar os dois na calçada pode ser que role um óbito. O senhor do "EU TE CONHEÇO!", senta em um banco alto pra dificultar o processo, prende as pernas no chão e segura com as duas mãos no banco da frente, jogando a cabeça pra trás quando tentam o puxar, mas termina o dia sendo levado no colo para a calçada. 

Seria um domingo de glória novamente? Não, não seria, porque o senhor "CALA A BOCA!" não segue o próprio conselho e com sua garrafa de Duelo em mãos, não fecha a boca um minuto sequer do que restava da viagem.

-- SORTE DELE QUE EU NÃO TINHA UMA ARMA. AH, SE EU TIVESSE UMA ARMA. IA SER SÓ UMA VEZ. ELE IA VER SÓ. (Repete a mesma frase 7 vezes.)

Eu, que estava calma, lendo, torcendo para esticar minhas pernas no sofá logo, perdi o controle, AH SE EU TIVESSE UMA ARMA, e quando me dei conta minha voz já estava ecoando nos cantos do ônibus com meu sonoro:

-- CHEGAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!

O bêbado calou a boca. O resto dos passageiros me encararam. Perdi a página do livro em que estava. Meu ponto chegou e fui encarada pelo senhor até descer.

Dias de luta, dias de glória e dias de completo descontrole emocional: trabalhamos.


A Vida Invisível de Eurídice Gusmão | Martha Batalha.



“Esta é a história de Eurídice Gusmão, a mulher que poderia ter sido.”

A década de 1920 prometia aos cariocas anos promissores, mas Eurídice Gusmão nunca os encontrou. Filha de portugueses, desde cedo aprendeu que suas vontades e talentos não possuíam espaço no Rio de Janeiro, e que ter um marido, ser uma mulher honrada aos moldes dos costumes da época e poder passar duas horas arrumando seus cabelos em salões de beleza era o máximo a ser cobiçado -- e eternamente agradecido. Mesmo assim, nada disso era suficiente para alguém como Eurídice. 

Por não ser suficiente, a Parte de Eurídice Que Não Queria Que Eurídice Fosse Eurídice se acendia com mais frequência do que Antenor, seu bom marido funcionário do Banco do Brasil que provia tudo o que seus filhos e esposa poderiam necessitar mesmo que nunca os tenha perguntando o quê, gostaria. Enquanto seu café estivesse passado, seus chinelos próximos a cama e a casa em ordem, tudo estava bem; mas era Eurídice querer inventar de escrever, de costurar ou de encontrar algo para completar suas tardes ociosas que virava vagabunda. E assim a mulher com talentos vários e oportunidade nenhuma continuava sua existência invisível. 

“Concordaria com tudo, desde que não tivesse que dizer mais nada. A moça estava numa  espécie de autos da vida, porque depois das torturas da escola, da febre da flauta, do drama do flerte, das quimeras da quitanda, das conquistas da cozinha e das artes da costura ela se rendeu, anunciando a vitória da Parte de Eurídice Que Não Queria Que Eurídice Fosse Eurídice.”

Apesar do nome, A Vida Invisível de Eurídice Gusmão não tange apenas a personagem que o nomeia. Nele temos Guida Gusmão, irmã de Eurídice que segue caminhos diferentes, mas tão invisíveis quanto, e que de tanto fugir, retorna ao ponto de início. Temos mulheres como Zélia, que de tão infeliz precisa espalhar para o bairro as infelicidades alheias -- sejam elas verdadeiras, ou não --, mas que em momento algum é tida como uma vilã na história: Zélia tem um passado, como todos, e é ele quem dita o que será no futuro. Zélia também tem a sua invisibilidade. 


“Zélia não se tornou um simulacro de ornitorrinco assim, de uma hora para a outra — essas coisas de evolução demoram para acontecer. A transformação começou ainda na infância, quando o que era para ser dom se tornou pesar. Do pai ela herdou o gosto pela notícia, da mãe a vida restrita ao lar. Do mundo ganhou desgostos, do destino a falta de escolhas. Formou-se assim a essência da fofoqueira.”

Com diversas mulheres precisando ser visíveis ao longo dos capítulos, A Vida Invisível de Eurídice Gusmão é uma colcha quentinha em um fim de tarde preguiçoso em forma de livro. Leve, quente, tem seus momentos de coceira em que pode causar a vontade de atirá-lo longe, mas não por ser ruim, o desconforto vem daquele calor de reconhecimento, vem da percepção de que os anos passam, as cenas mudam, mas as invisibilidades femininas ainda estão aí e continuam não sendo faladas nem por nós.

Ao escrever sobre como ser mulher é ao mesmo tempo, não conseguir ser, Martha Batalha não decepciona. E não é para menos: a autora que teve seu livro rejeitado anteriormente no Brasil, foi aceita por editoras estrangeiras -- hoje tem sua obra traduzida em mais de cinco línguas --, com direito a contrato para futura versão cinematográfica, e só então foi publicada em território nacional. 

Uma leitura aconchegante, rápida e mesmo assim profunda. Em um quote:

“Cecília veio ao mundo nove meses e dois dias depois das bodas. Era uma bebê risonha e gordinha, recebida com festa pela família, que repetia: É linda! Afonso veio ao mundo no ano seguinte. Era um bebê risonho e gordinho, recebido com festa pela família, que repetia: É homem!”





Self image 2018.


Sou uma pessoa de abraços, mas nem sempre isso foi assim. A timidez por muito tempo foi uma barreira para o toque, do mais superficial ao mais próximo, só que em algum momento do ano passado isso mudou e eu me tornei alguém-de-abraços, dos mais leves até aos que puxam o ar e colocam o mundo no lugar certo. 

Não sei muito sobre o amor — e a cada dois passos mais próximos dele, me sinto de volta a um para trás —, e do pouco que sei, muito ainda preciso melhorar: aprender a me virar sozinha desde cedo me roubou a tolerância ao que não se assemelha a quem sou, tão essencial para saber lidar com quem está do outro lado. 

O passar dos anos me mostrou que a cada dia me pareço mais com meu pai, o que faz com que o eu de hoje queira muito voltar alguns anos atrás dizendo para sua antiga versão que duas peças iguais não se encaixam perfeitamente, mas podem ocupar o mesmo espaço quando colocadas da forma correta, e principalmente, que o amor é tolerante. Ao mesmo tempo que sigo com tal desejo, sei que em tempos anteriores não entenderia absolutamente nada disso, então apenas aceito o presente com todas as falhas do passado. Algo me diz que minha versão mais nova perdida em algum dos muitos lugares do universo fica feliz por quem é agora, mesmo com todas as diferenças do que um dia foram suas idealizações. 

Nas aulas de português do ensino fundamental aprendi a compor histórias. Cada uma delas possui início, meio e fim, personagens que coexistem e em alguns momentos precisam lidar com o existir solitário, falas que completam diálogos essenciais para se chegar ao clímax e pontos finais, que demoram um pouco para surgir, mas entre eles existem as vírgulas, e quando necessário, ponto e vírgula podem aumentar o tempo de descanso até a próxima palavra. Atualmente sou o meio, mas ainda assim tenho muitos personagens com quem devo coexistir, momentos para lidar comigo mesma e diálogos para manter, sem nunca me esquecer que não só posso como devo usar as vírgulas, já que não sou uma narração sem pausas. 

Conheço o amor muito pouco, mas estou no meio do caminho para aprender a me amar e me abraçar. 

A ideia do Self Image é do Eric que os publica anualmente. No blog você encontra as versões de 201420152016 e 2017.
© Limonada
Maira Gall