Ilustração por Anna Macht. |
Acordo ás seis da manhã e sigo a rotina já tão bem incorporada, praticamente uma memória muscular: calço os chinelos, acaricio o cachorro, arrumo a cama, limpo o rosto, desço as escadas, preparo o café. É quando ligo a TV, transmitindo o jornal local, que a normalidade enfim se quebra, e a realidade me atinge com violência por tê-la ignorado durante esses poucos minutos. Como pude tentar esquecê-la? Como ouso?
O cheiro do café sendo passado toma a cozinha, enquanto o jornalista faz a mesma reclamação do dia anterior — os índices de isolamento em São Paulo nunca são maiores que 49% —, e me pergunto se estou ou não tendo um déjà-vu. Nesse mesmo momento minha mãe aparece no cômodo, em seu uniforme azul que estampa a logo do supermercado, e meu coração parece esquecer seu ritmo quando um pensamento que já tive ontem, mas que dessa vez sei não ser mais um déjà-vu, me invade: em uma cidade cujas taxas de comprometimento com a quarentena são baixas, a mulher que considero ser toda a minha família precisa continuar saindo para nos sustentar. Sempre fico dividida entre o alívio de não estarmos passando dificuldades financeiras assim como muitos, e o desespero de vê-la indo trabalhar diariamente enquanto fico para trás.
Se em uma realidade paralela eu pudesse observar como seria não viver uma pandemia, me veria saindo de casa com minha mãe, deixando ração e água para o cachorro de olhar triste com nossa ida, entrando em transportes públicos sem me preocupar tanto com quantas pessoas estão ali unidas pelo atraso do serviço e em como nossas mãos tocam nas mesmas superfícies. Assistiria aulas, cumprimentaria colegas, almoçaria com amigos e em algum momento do dia respiraria fundo enquanto acompanhava a altura do prédio do Hospital São Paulo, com o corpo indo para trás, até ver seu topo, fechando um dos olhos no exato momento em que a luz solar o encontrasse, pensando em quantas pessoas fazem daquela sobreposição de tijolos um verdadeiro local de atendimento à saúde, de cura, de cuidado, de pesquisa e ciência, e em como seria quando a minha vez de trabalhar ali enfim chegasse.
Olho para o lado e minha mãe está se despedindo. Abro as janelas da sala enquanto a vejo fechar o portão e apesar de não estar olhando para cima, um raio de luz me atinge e involuntariamente tenho a mesma reação que teria caso a vida ainda seguisse em sua normalidade quando olhava para o topo do prédio: um olho aberto, outro fechado. Respiro fundo.
Todo o dia se passa com meu corpo em casa e minha mente acompanhando cada pessoa que precisa continuar trabalhando, se expondo, cedendo um pedaço seu. Reparo em coisas que antes não sabia: entre sete e oito horas da manhã pássaros entram no meu quintal e cantam, diariamente; das oito às nove a vizinha estende sua roupa; das nove às dez alguma outra casa liga a máquina de lavar e seu som reverbera pela quadra; das dez ao meio-dia carros passam, às vezes sirenes tocam e é sempre nesse espaço de tempo que sinto um pesar: não há nenhum hospital nas redondezas, e sei muito bem o que a sirene de uma ambulância tão próxima significa; ao meio-dia minha mãe manda uma mensagem, irá almoçar. Pergunto como ela está, como estão os funcionários, se os clientes respeitam as recomendações, se tem alguma dor, torcendo para que não tenha; às treze desisto de tentar preencher a inquietação e me permito senti-la; às quatorze a tristeza dá lugar a raiva, e sinto, sinto, sinto; às quinze digo que retomei o controle e me ocupo de afazeres; às dezesseis penso que mais aquele dia está perto de acabar; às dezessete, lembro que minha mãe já foi liberada do serviço e me certifico de ter feito todas as tarefas na casa, esperando-a; às dezoito ela chega com as orientações cravadas em sua própria pele, de tanto que as repeti: tira os sapatos, mercadorias da nossa janta para fora, eu as limpo, as guardo, ela toma banho, as roupas são lavadas pela máquina; às dezenove minha fé se renova, estamos bem, estamos vivas, temos uma casa, roupas e ainda não encontramos o inimigo invisível que ataca toda a humanidade; às vinte me sinto egoísta, muitos não estão bem, nem vivos, e se possuem casa e roupas, perderam o lar que tinham no outro. Como ouso tentar esquecê-los? Como posso?
Me deito para dormir desejando que o amanhã demore um pouco mais a chegar, mas o tempo tem seu próprio tempo, o relógio me acorda às seis e sigo a mesma memória muscular. Como posso tentar esquecer? Como ouso?
É um misto de sentimentos que ainda estamos tentando administrar. Ao mesmo tempo o impacto que a pandemia nos causou está transformando o modo como vemos e vivemos as coisas.
ResponderExcluirP.S: Gostei da escrita da tua cronica
tô sem palavras pra esse texto...
ResponderExcluirme senti acompanhando você. 24 horas em 5 minutos.
compartilho do sentimento. gratidão por ver as pessoas que amo bem e seguras, mas culpa por me sentir assim, pois sei que nem todos tem esse privilégio.
como a gente ousa esquecer por uns momentos? mas, ao mesmo tempo, lembrar o tempo todo dói. difícil...
Que bonito e triste esse texto, Tati! Você parece ter tanta facilidade com as palavras.
ResponderExcluir