Enquanto minhas pernas são esquentadas por um grosso cobertor, doado por algum parente em um outro momento da vida, a luz amarela da cozinha invade a tela branca do notebook e evidencia minha postura um pouco torta após a minha primeira (e tomara, última) cirurgia — uma colecistectomia que precisou ser realizada após alguns episódios de cólica biliar confundida com gastrite. Na tela, começo a escrever o texto que anualmente me leva a olhar para dentro.
Nunca escolhi nenhum dos lençóis da minha cama. A mistura de fios de algodão e poliéster, em sua maioria, eram passados entre parentes da minha família até terminarem nas minhas mãos. Nesse ano, vivendo mais um dos muitos momentos desde que sai da faculdade em que me pergunto o que faço com toda essa liberdade financeira recém adquirida, me vejo tendo que "consertar" coisas que não eram exatamente minha responsabilidade, mas se não o forem, não serão de mais ninguém. Como as facas que faltavam no gaveteiro. A mesa de jantar que precisava ser trocada. A nova cadeira de escritório necessária agora que trabalho em modelo home office. Demorei alguns anos para conseguir entrar na universidade, e para enfim concluir a graduação, dado todo o contexto social da minha família, e agora, no auge dos meus vinte e oito anos, não posso mais decidir escolher gastar meu dinheiro com o que der vontade. Já tenho uma idade mais séria. Não posso fingir que não estou vendo as dificuldades da minha mãe. Não dá pra ignorar os problemas da casa em que vivo e que podem ser resolvidos com meu dinheiro quando passei tanto tempo focada no futuro em que eu finalmente teria como ajudar financeiramente. Mas voltando ao ponto de inicio: nunca escolhi meus lençóis, porque em um mundo em que poder de escolha é poder de compra, meus gostos nunca puderam ser favorecidos. Depois de todos esses anos aceitando, agradecendo, e obedecendo, pela primeira vez comprei lençóis. Um conjunto azul marinho com xadrez em branco e outro conjunto off-white com luas, estrelas e sóis. Ambos escolhidos a dedo. Ambos desejados. Sinto que durmo melhor quando estou neles.
O mesmo aconteceu com meus cobertores. Sempre aceitei aqueles que porventura viessem parar na minha mão, mas nunca os escolhi. Pedi um de presente de dia dos namorados. Ganhei. Gostei. Mas não escolhi. Queria tanto ter tido mais anos de escolhas conscientes e menos anos de passividade frente ao que tenho que aceitar por "ser o que dá".
Me prendi tanto ao que eu queria ser profissionalmente que esqueci de ser eu mesma. De continuar insistindo no que me fazia bem. De saber falar inglês de tanto ter visto séries e filmes e ouvido músicas. De entender de HTML e conseguir criar meus próprios layouts pro blog. De ter ideias para ficções e sonhar com livros publicados. Mesmo que em plataformas virtuais. Mesmo que mal lidos.
Esqueci como escrever textos. Antes, em uma única "sentada" em frente ao notebook, incontáveis posts eram publicados por aqui. Hoje estou escrevendo parágrafos desconexos na esperança de que se eu os reorganizar, em algum momento saia daqui com algo que minimamente se adeque ao conceito de coesão textual.
Engraçado como de todas as versões que já escreveram neste blog ao longo dos últimos doze anos, a de agora possui bagagens mais pesadas, e ainda assim, tem se sentido a mais leve. Também sinto que esse é o primeiro self image em anos em que não estou mentindo para mim mesma sobre como me sinto.
Escolho não estar mais sempre do lado passivo por falta de poder.
A ideia do self image é do Eric que os publica anualmente. No blog você encontra as versões de 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019, 2020, 2021/2022, 2023 e 2024
Oi Tati! Acabei de cair de paraquedas no seu blog e tô saindo dele reflexiva, você colocou limão em feridas quase cicatrizadas kkkkk. Me identifiquei muito com essa questão de passividade por falta de acessos, e é muito doido ver como isso molda como nos expressamos no mundo. E esse processo de amadurecimento é nos redescobrir quando finalmente temos meios. Me lembrou um pouco alguns vídeos nas redes sociais sobre "dinheiro adulto para comprar coisas infantis", e nem é tanto sobre uma criança interior, é sobre quem não tivemos oportunidade de ser. Eu gostei muito desse emaranhado de pensamentos.
ResponderExcluirGarota do 330
A questão da passividade e de não poder escolher suas próprias coisas é algo que eu entendo muito bem. Apenas agora, que eu tenho um emprego e ganho meu próprio dinheiro, consigo realmente comprar coisas que me fazem sentir eu mesmo.
ResponderExcluirOi, Tati! Tudo bem?
ResponderExcluirA parte de parar de sonhar com livros publicados ressoou alto aqui. Faz eu me perguntei quando parei e porque eu parei e onde foi parar a graça disso tudo.
Aproveite seus lençóis novos, eles parecem muito fofos e significam muito!
Espero voltar aqui mais vezes.
Se cuida!
como irmã mais nova me identifiquei com o seu relato. as roupas da minha irmã eram passadas pra mim, assim como as roupas de primas mais velhas e nada do que eu recebia eu gostava de fato, mas aceitava pq se não fosse por essas roupas não seria mais nenhuma outra. hoje posso comprar o que gosto e vestir o que gosto e fiquei feliz por vc ter finalmente tido o poder de escolha. to pra fazer um self-image há meses mas não sei que tom escolher pra um post assim
ResponderExcluirbeijinhos, nanaview 💌
sinto algo muito parecido, tanto sobre roupas de cama (quando comprei as primeiras sem pensar só no valor, mas pensando no que eu queria de uma roupa de cama) quanto sobre esquecer de mim mesma (essa aí acontece de quando em quando, risos). às vezes a gente tem que negar o que é oferecido pra gente, o que "dá", e fazer o que a gente quer. mesmo que seja o caminho mais difícil.
ResponderExcluirmas dá tanto trabalho!!!! HAHAHA. um passinho de cada vez, acho.
beijo, tati!